Aos 54 anos, o senhor João, um cidadão hipertenso morador de uma pequena cidade com poucos recursos assistenciais, sofreu um infarto. Teve de ser cond
Aos 54 anos, o senhor João, um cidadão hipertenso morador de uma pequena cidade com poucos recursos assistenciais, sofreu um infarto. Teve de ser conduzido às pressas a um hospital de alta complexidade de outro município e passar por um cateterismo. O personagem é fictício, mas serve para ilustrar como a história de pacientes como o senhor João poderia ser diferente se uma espécie de “bola de cristal” antecipasse o risco de acabar em um centro cirúrgico.
Pois essa tal “bola de cristal” já está implantada em 11 cidades de baixo IDH do Norte de Minas Gerais e Sul da Bahia. Trata-se de um algoritmo de inteligência artificial (IA) treinado para predizer, a partir de informações coletadas pelos agentes locais de saúde, quais pacientes têm risco de desenvolver complicações associadas à hipertensão, como infarto e AVC. Por que isso é importante? Porque permite fazer intervenções preventivas, evitando quadros graves, internações e custos associados.
Trata-se de um exemplo corriqueiro do papel que a IA pode ter no enfrentamento de grandes desafios da saúde pública no Brasil, entre eles o envelhecimento da população com aumento das doenças crônicas, as enfermidades associadas aos impactos das mudanças climáticas, as disparidades das estruturas regionais de cuidados de saúde que dificultam o acesso, a concentração de médicos nas regiões mais desenvolvidas do País e a ausência de especialistas nos lugares mais vulneráveis.
Algoritmos, iniciativas e plataformas já vêm dando mostras do que são capazes e do muito que ainda está por vir – algo bem ilustrado na série da revista The Economist que o Estadão traz para os leitores brasileiros.
Soluções de IA podem interpretar exames de imagem e apontar a ocorrência de um AVC ou um câncer de mama, por exemplo. Se em um hospital privado com tecnologias e profissionais especializados, a solução funcionar mais como uma espécie segunda opinião, sem um grande valor agregado, em uma unidade pública carente desses recursos pode ser um alerta importantíssimo para o diagnóstico precoce de um tumor ou para uma rápida intervenção no caso de um AVC que evitará ou minimizará sequelas.
Como ferramenta de apoio ao trabalho de profissionais de saúde, a IA pode ser salvadora de vidas e indutora de tratamentos mais eficientes e seguros. Estudo realizado na Tanzânia, por exemplo, mostrou que um aplicativo baseado em algoritmo de suporte à decisão clínica contribuiu para reduzir com segurança a prescrição de antibióticos em comparação com os cuidados convencionais. Antibióticos em excesso propiciam a proliferação de bactérias multirresistentes. Esses microrganismos, estima-se, causam centenas de milhares de mortes anualmente, e o número tende a aumentar nas próximas décadas.
Na Amazônia Brasileira, que tem ainda altos índices de mortalidade materna e áreas sem especialistas para acompanhamento pré-natal, está em andamento um projeto de IA generativa conduzido pelo Einstein que “escuta” a consulta e sugere ao médico perguntas que ajudam a identificar eventuais riscos para gestante e bebê. Essa iniciativa, entre outras, integra as do novo Centro de Inovação que a organização está inaugurando exatamente nesta semana em Manaus e que, além de catalisar a o desenvolvimento de soluções em saúde, fomentará a pesquisa e o empreendedorismo na área.
Já na África do Sul, um chatbot vem ajudando a melhorar a avaliação de risco de HIV ao interagir com as pessoas que parecem sentir-se mais à vontade para revelar seu histórico sexual para uma máquina e não para um agente de saúde humano. Mas há situações inversas: as pessoas se sentem mais bem cuidadas (e provavelmente o são) pelo médico que dá mais atenção à conversa com ela porque, em vez de ficar fazendo anotações, deixa a tarefa para um transcritor de áudio treinado para registrar o que é relevante para os cuidados de saúde.
Com base nessas e em outas tecnologias, o SUS pode se beneficiar grandemente do que vem por aí. Processar grandes volumes de dados e extrair deles inteligência também permite ganhos operacionais extraordinários, como criar “leitos virtuais” por meio da otimização de processos, sem investir um tostão em ampliação de estrutura; ou predizer qual paciente do pronto-socorro vai precisar ser internado ou operado e já mobilizar os recursos para isso, agregando agilidade e eficiência ao atendimento.
É também o mix de processamento de muitos dados com IA que promete acelerar o desenvolvimento de novos medicamentos. Se estiverem certos os estudos que estimam economias de tempo e custos de 25% a 50% na fase pré-clínica, podemos esperar no futuro mais remédios novos chegando ao mercado mais rapidamente e a preços mais acessíveis.
Otimização do tempo dos profissionais, apoio ao diagnóstico e à decisão médica, melhoria da qualidade da assistência, democratização do acesso, redução de custos, prevenção de doenças e controle das existentes… A IA pode e deve entrar em cena para o enfrentamento de uma infinidade de desafios da saúde.
É preciso, porém, estabelecer prioridades, olhar para os processos, para os dados disponíveis ou que podem ser gerados e entender onde ela pode fazer a diferença. Além disso, ensaios clínicos, estudos observacionais prospectivos e testes controlados no mundo real são indispensáveis para atestar os benefícios e mitigar potenciais malefícios.
Mas é fascinante observar a multiplicidade de iniciativas e saber que essa é apenas a ponta do iceberg. Fazê-lo emergir é explorar todo o potencial da IA para modelar o mundo da saúde com que todos sonhamos: com mais qualidade, mais acessível, equânime e sustentável. Muita coisa ainda é promessa, mas é indiscutível que estamos no limiar de uma nova era para a saúde.